Projeto capitaneado pela USP vai sequenciar o genoma de 15 mil brasileiros, para conhecer melhor a variabilidade genética da população e aumentar a eficácia de intervenções médicas baseadas em genética
Desvendar a receita genética do povo brasileiro. Esse é o objetivo de um ambicioso projeto, capitaneado por cientistas da USP, que propõe sequenciar o genoma de 15 mil brasileiros — das mais diferentes cores, formas e origens — para entender melhor como esse caldeirão borbulhante de etnias influencia a saúde da nossa população.
A iniciativa, batizada de DNA do Brasil, busca corrigir um viés racial e geográfico das informações depositadas até agora nos bancos de dados genômicos internacionais. Como a maioria das pesquisas desse tipo foi feita em países desenvolvidos do Hemisfério Norte, a maior parte dos dados disponíveis é de pessoas de origem caucasiana (ancestralidade europeia), que não representam a diversidade genética da população brasileira — caracterizada por uma mistura de europeus, negros e indígenas.
“Existe uma consciência muito aguda na comunidade científica sobre a falta de representatividade nos dados genômicos de populações”, diz a pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, chefe do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da USP, que coordena o projeto. Cerca de 80% das pessoas genotipadas até agora são de origem europeia, em comparação a apenas 1% de origem hispânica ou latino-americana, segundo um estudo recente publicado na revista Cell.
Isso tem consequências práticas importantes para o desenvolvimento da chamada “medicina de precisão”, ou medicina genômica, que utiliza informações contidas no DNA para otimizar processos de diagnóstico, fazer previsões e orientar a seleção de tratamentos de acordo com as características genéticas de cada paciente — por exemplo, por meio da identificação de mutações que aumentam o risco de uma determinada doença ou diminuem a eficácia de algum remédio.
“Para quem estamos desenvolvendo essa medicina de precisão?”, questiona Lygia. “Todos esses novos testes de predição de doenças estão sendo feitos baseados na genética europeia.”
O problema é que a genética europeia é muito mais homogênea do que a brasileira. Apesar de as letras do “alfabeto genômico” (A, T, C e G) serem as mesmas para todos os seres vivos, e de todos os seres humanos do planeta serem 99,9% idênticos entre si do ponto de vista genômico, a população brasileira — por conta do seu histórico de miscigenação — abriga uma variabilidade genética muito maior do que a de outros povos, o que torna o estabelecimento dessas correlações entre genes e saúde muito mais complexo. Daí a necessidade de gerar dados específicos para a nossa população, segundo os pesquisadores.
Fazendo uma analogia, o genoma funciona como uma “receita genética” para a produção de um organismo. Os genes são as instruções dessa receita, e as proteínas codificadas por eles são os ingredientes. As mutações são como erros de digitação nessas instruções, que causam alterações nos ingredientes. Essas alterações podem ser benéficas, maléficas ou inócuas, dependendo da função de cada ingrediente; e a única maneira de fazer essa diferenciação é conhecendo a receita original e o produto final. No caso do Brasil, cada indivíduo é uma sopa aleatória de ingredientes de diferentes continentes.
“Essa variabilidade da nossa população é uma coisa muito única”, destaca Lygia. “A gente vai encontrar aqui combinações genéticas inéditas, que a gente não encontra nas populações de origem.”
“Dificilmente você encontra no Brasil alguém 100% africano, ou 100% europeu, e todos têm algum componente nativo-americano”, diz a pesquisadora Tábita Hünemeier, também professora da USP, especialista em genética de populações humanas e colaboradora do projeto.