Pesquisas buscam novas técnicas de diagnóstico e investigam causas do retorno da doença mesmo depois do tratamento
A tuberculose é uma doença que segue os marcadores de desigualdade e vulnerabilidade de uma região em um período. A afirmação do médico epidemiologista Otávio Ranzani expõe uma das principais razões do aumento do número de casos da doença no Brasil a partir de 2017. A crise econômica contribuiu para o crescimento da epidemia, que havia recuado nos dez anos anteriores graças aos programas de controle do sistema público de saúde. A doença, causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis, afeta principalmente os pulmões e requer um tratamento de, no mínimo, seis meses. Além da tuberculose ser incapacitante, atualmente há um aumento do número de casos resistentes aos medicamentos usados no tratamento, o que tem levado pesquisadores a fazerem o sequenciamento do genoma da bactéria para aperfeiçoar o diagnóstico. Outros estudos demonstram que, além da melhora do sistema de saúde, é preciso dar suporte social durante e depois do tratamento para a população mais carente, a fim de controlar a doença.
Ranzani menciona os dados do Relatório 2019 sobre a Tuberculose, divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no último 17 de outubro, que indicam o aumento do número de novos casos e recidivas da doença no Brasil. “A estimativa, considerada a mais precisa disponível, baseada em dados oficiais, aponta 95.000 casos novos ou recidivas em 2018. Isso equivale a aproximadamente 250 casos por dia ou 10 casos por hora”, conta. “Considerando o período entre 2000 e 2018, a incidência da tuberculose no Brasil teve seu valor máximo em 2004, com 54 casos para cada 100.000 habitantes. Desde então, a incidência anual vinha caindo sucessivamente, atingindo seu valor mais baixo em 2014, com 43 casos para 100.000 habitantes, estabilizando-se em 2015 e 2016. Porém, desde 2017 começou a subir, atingindo 45 casos por 100.000 habitantes em 2018”.
O médico Valdes Bollela, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, que pesquisa novas técnicas de diagnóstico da doença, aponta que há dois anos a tuberculose ultrapassou o HIV/aids como principal causa de mortes dentre as doenças infecciosas. “De modo geral o número de casos está diminuindo, mas a resistência a medicamentos vem aumentando”, relata. A tuberculose resistente acontece quando a rifampicina e a isoniazida, principais drogas usadas no tratamento, não são eficazes, e o tempo de tratamento pode chegar a 18 meses. “Também estão aumentando os casos na população que tem imunossupressão, ou seja, alguma condição que pode reduzir as defesas do organismo: pessoas vivendo com HIV/aids, portadores de diabetes, usuários de medicamentos que diminuem a imunidade por conta de doenças autoimunes, como a artrite reumatoide, doenças inflamatórias no intestino, como a doença de Crohn, doenças de pele, por exemplo, a psoríase, transplantes e uso de corticosteroides”.
Incidência de tuberculose no Brasil a partir de 2018:
95 mil 250 casos por dia 45 casos por 100mil habitantes
novos casos de tuberculose
(ou recidivas)
O Brasil é considerado um país de alta carga de tuberculose pelo grande número de casos, aponta Ranzani. “O País é um exemplo de sucesso dentre os 30 países considerados de alta carga, particularmente pelos avanços no controle e melhoria no diagnóstico, a cobertura universal do tratamento via Sistema Único de Saúde (SUS) e por desenvolver redes de pesquisa, como a Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose”, afirma. “No entanto, a incidência, que ainda não tinha atingido o valor alvo, voltou a subir. Além disso, existem outros pontos a serem melhorados, como o desfecho do tratamento, indicador que ainda não alcançou as metas estabelecidas”.
Diagnóstico
Na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), o Centro de Pesquisa Molecular em Tuberculose, juntamente com o Centro de Medicina Genômica do Hospital das Clínicas da FMRP (HCRP), sequenciou o genoma de vários isolados de Mycobacterium tuberculosis de pacientes atendidos em Ribeirão Preto e na cidade da Beira (Moçambique), em um projeto conjunto com pesquisadores moçambicanos e da África do Sul. “O sequenciamento é uma arma para o diagnóstico mais preciso e completo da resistência da bactéria aos medicamentos usados no tratamento”, relata Bollela. “Além de prover informações sobre a resistência, o sequenciamento pode auxiliar também no estudo da transmissão e de mecanismos de patogenenicidade, ou seja, ligados à capacidade da bactéria causar a doença”.
De acordo com o médico, após o sequenciamento do genoma completo, é possível fazer ao menos quatro análises relevantes para o manejo clínico e a epidemiologia da tuberculose. “A técnica permite traçar o perfil de resistência da bactéria a todos medicamentos existentes, o elo de transmissão entre pacientes, contatos ou familiares, as linhagens do bacilo e os mecanismos de virulência e patogenicidade associados ao bacilo”, aponta. “Para fazer estes quatro tipos de estudos, atualmente são necessárias diferentes técnicas e tecnologias, todas com alto custo e que exigem recursos laboratoriais sofisticados e nem sempre disponíveis em várias regiões do Brasil”.
Entre as vantagens do sequenciamento para diagnosticar a tuberculose resistente, Bollela aponta que o paciente poderá utilizar os medicamentos corretos e alcançar a cura, pois um tratamento errado pode aumentar a resistência da bactéria. “A técnica também traz benefícios para a sociedade, pois uma pessoa com tuberculose pode transmitir a doença, e se for resistente, a doença transmitida será também por um bacilo resistente. Em alguns países do mundo, a disseminação da tuberculose resistente se tornou uma crise de saúde pública”, destaca. “A economia do país também é favorecida, pois quando não se controla e elimina a tuberculose resistente, pode haver um contingente grande de pessoas com uma doença incapacitante, que acomete pessoas de todas as idades, principalmente durante a sua vida economicamente ativa, e que precisam receber tratamento por no, mínimo, 18 meses com drogas injetáveis e por via oral”.
O sequenciamento abre possibilidades para novos estudos de epidemiologia molecular para investigar transmissão da tuberculose em locais como presídios, hospitais e até na comunidade, ressalta o professor. “Desde o ano passado, o grupo de pesquisa tem um novo projeto em andamento, que avalia possíveis cadeias de transmissão da TB dentro de presídios da região nordeste do Estado de São Paulo utilizando o sequenciamento genômico”, afirma. O projeto tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “Apesar do Centro de Medicina Genômica ter toda a tecnologia para o sequenciamento, a análise de bioinformática dos dados gerados ainda é feita por um grupo de pesquisadores da Universidade de Stellenbosch, na África do Sul”. Em novembro do ano passado, a pesquisadora Anzaan Dippenaar, do Centro de Tuberculose Genômica da Universidade de Stellenbosch, realizou um treinamento para pesquisadores que trabalham com estudo genômico da tuberculose. A iniciativa contou com o auxílio do Programa Interinstitucional de de Internacionalização (Print), para professores visitantes, da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da USP, com apoio da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).