Inovação: o ingrediente que desafia as universidades

Além do tripé ensino, pesquisa e extensão, professores defendem papel mais ativo das instituições na promoção da inovação tecnológica

Relação “ganha-ganha” entre universidades e empresas foi um dos temas da SciBiz Conference, que reuniu cientistas e empresários na USP – Foto: Divulgação/Oiweek Scibiz 2019

Ensino, pesquisa e extensão: este tem sido o lema das universidades públicas brasileiras pelos últimos 30 anos, seguindo o princípio da indissociabilidade dessas três funções, estabelecido no Artigo 207 da Constituição Federal de 1988. Cada vez mais acadêmicos, porém, defendem a inclusão de um quarto ingrediente nessa receita: o da inovação tecnológica.

Além de produzir conhecimento científico, muitos pesquisadores acreditam que as universidades devem assumir um protagonismo mais efetivo no processo do desenvolvimento de novas tecnologias, induzindo a transformação desse conhecimento em produtos e serviços inovadores, que atendam a demandas específicas da sociedade.

Esse foi um dos temas centrais da SciBiz Conference, o maior evento de inovação e empreendedorismo do Brasil, realizado entre 25 e 28 de fevereiro na USP, sob coordenação da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA). Foi a segunda edição da conferência, realizada em parceria com a 11ª edição da Oiweek (Open Innovation Week), organizada pela 100 Open Startups. Mais de 410 startups e 130 grandes empresas participaram, totalizando quase 20 mil pedidos de reuniões, 3,3 mil reuniões registradas e 2,5 mil negócios iniciados, segundo números da organização do evento.

“As universidades são financiadas com recursos públicos, e a resposta às demandas da sociedade é algo esperado daqueles que a financiam”, disse o professor do Instituto de Biociências (IB) e diretor da Agência USP de Inovação (Auspin), Antonio Carlos Marques, durante a mediação de um debate sobre o perfil “ganha-ganha” das relações entre empresas e universidades na promoção da inovação.

“Hoje em dia as universidades têm de prestar contas não só aos seus alunos, mas também à sociedade”, reforçou o engenheiro Julio Meneghini, professor da Escola Politécnica (Poli) da USP e diretor científico do Centro de Pesquisa para Inovação em Gás (RCGI), uma iniciativa multimilionária financiada pela Shell e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em parceria com a USP.

O nome SciBiz simboliza o encontro do mundo da ciência (science) com o dos negócios (business). O que não significa que as universidades públicas devam atuar como empresas, muito menos abrir mão da pesquisa básica ou da sua liberdade acadêmica, mas trabalhar em parceria com o setor privado para fomentar o empreendedorismo e potencializar, sempre que possível, a transformação da ciência em tecnologia — ou seja, a aplicação do conhecimento científico no desenvolvimento de novos produtos e soluções tecnológicas que sejam de interesse do mercado e da sociedade.

Na plenária “Criando Unicórnios”, o professor Lino Rodrigues Filho (FEA) conversou com os jovens empreendedores Laura Camargo (Gympass), Vitor Olivier (Nubank), Vitor Magnani (iFood) e Vinícius Dias (Canal da Peça) – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Como fez, recentemente, o físico e químico Sergio Mascarenhas, Professor Emérito da USP em São Carlos. Motivado por um problema de saúde pessoal (hidrocefalia), ele trabalhou com seus alunos para desenvolver o primeiro aparelho no mundo capaz de medir a pressão intracraniana de forma não invasiva. Em vez de fazer um furo no crânio (como fizeram no dele, em 2006), a medição é feita externamente por um sensor preso a uma faixa em volta da cabeça, parecido com uma dessas cintas cardíacas usadas por corredores para monitorar o coração. A invenção deu origem à startup Braincare, responsável pelo desenvolvimento comercial da tecnologia, que foi lançada em 2018 e já está sendo usada em vários hospitais de referência no Brasil e no exterior.

“O conhecimento só tem valor se você consegue transformá-lo em algo útil para a sociedade”, é o que costuma dizer o professor Mascarenhas, segundo o diretor de operações da Braincare, Arnaldo Betta, que falou em nome da empresa na SciBiz.

Mascarenhas não está sozinho. Segundo os dados mais recentes da Auspin, apresentados no evento, mais de mil empresas já foram criadas por alunos e ex-alunos da USP, incluindo quatro “unicórnios” — startups com valor de mercado superior a US$ 1 bilhão: iFood, 99, Nubank e Gympass. Além disso, há um vasto portfólio de projetos de pesquisa e desenvolvimento realizados em parceria com empresas públicas e privadas. O RCGI é talvez o maior deles, com um orçamento de US$ 50 milhões, dedicado a pesquisas sobre gás natural, biogás, hidrogênio e dióxido de carbono. Outros exemplos de grande porte são a parceria com a Biolab Sanus, na área de medicamentos, e com a Caixa Econômica Federal (#CAIXAlab), dedicada ao desenvolvimento de tecnologias de interesse social.

“Estamos vivendo um momento muito bom de inovação”, diz o pesquisador Luiz Henrique Catalani, professor do Instituto de Química (IQ) e coordenador do Centro de Inovação da USP (InovaUSP), criado em 2017 justamente para arquitetar e apoiar projetos de inovação em grande escala na Universidade. Os números mostram que já há muita inovação sendo feita na USP, mas nem sempre com a eficiência e a organização necessárias para gerar resultados com o impacto desejado, observa Catalani. Segundo ele, é preciso investir em “propostas mais ousadas”, capazes de gerar inovações disruptivas, e não apenas incrementais.

Luiz Henrique Catalani, coordenador do InovaUSP – Foto: Francisco Emolo / USP Imagens

Essa é a missão do InovaUSP. “Queremos trabalhar com uma taxa de risco maior; com propostas verdadeiramente fora da caixa, que tenham caráter disruptivo, mas não sejam impossíveis de realizar”, diz Catalani. “Se vai dar certo ou não, vai depender da nossa organização e da nossa criatividade.”

O reconhecimento da promoção da inovação como responsabilidade do poder público é algo recente no Brasil, e que ainda precisa ser incorporado na prática pelas autoridades e instituições públicas de pesquisa. O termo só foi incorporado à Constituição Federal quatro anos atrás, por meio da Emenda Constitucional 85, de fevereiro de 2015, que inseriu a palavra “inovação” em vários dispositivos relacionados ao tratamento da ciência e tecnologia no País. O Artigo 207, que trata da missão das universidades, porém, permaneceu inalterado.

Discutindo a relação

Um dos principais desafios apontados pelos participantes do evento — além dos tradicionais entraves burocráticos, legais e tarifários que estrangulam o empreendedorismo no Brasil — é a superação de alguns vícios e preconceitos da própria academia com relação ao setor privado.

“Ainda há muito preconceito na relação indústria-universidade”, disse o diretor técnico e científico da Biolab Sanus Farmacêutica, Dante Alário Junior — egresso da USP. Segundo ele, é comum a visão de que a indústria interfere na autonomia universitária, e que pesquisadores que atuam em parceria com empresas são “mercenários” da academia em busca de dinheiro.

O biofísico Luis Carlos Ferreira sabe bem o que é isso. O Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, que ele atualmente dirige, já deu origem a aproximadamente 20 empresas e trabalha em parceria próxima com outras 10, mas “a grande maioria dos docentes ainda olha com muita desconfiança para esse movimento”, reconhece Ferreira. Duas dessas empresas, criadas nos últimos anos, estão desenvolvendo uma nova forma de imunoterapia contra o câncer e um teste de diagnóstico mais específico para o vírus zika, por exemplo.

“Ainda temos alguns bolsões de resistência, mas isso está mudando”, disse a vice-coordenadora da Auspin e professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP, Geciane Porto, especialista em gestão da inovação e empreendedorismo.

Nesse contexto, segundo os pesquisadores, o fomento à inovação nas universidades passa necessariamente por uma mudança cultural, não só no sentido de derrubar preconceitos arraigados quanto de semear o interesse pelo empreendedorismo e criar um ambiente propício para que ele floresça dentro da academia.

Luís Carlos de Souza Ferreira. OIWEEK Open Innovarion Week. 2019/02/28 Foto: Marcos Santos/USP Imagens

O empreendedorismo é “um modelo mental que precisa ser fomentado”, disse o gerente nacional de inovação da Caixa Econômica Federal, e também egresso da USP, Luis Felipe Bismarchi. Uma mentalidade que, segundo ele, está em falta tanto nas universidades quanto nas empresas.

“Os pesquisadores precisam pensar na inovação como um caminho natural possível da sua pesquisa, não como algo extraordinário ou que represente um desvio de função”, diz o biólogo Carlos Hotta, professor do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP e membro do S2B (Centro de Biologia Sintética e Sistemas de Biomassa, em inglês), um dos projetos abrigados pelo InovaUSP, voltado para o uso biotecnológico de biomassa (matéria orgânica) como fonte de energia.

Além de fomentar culturalmente essa mentalidade, diz Hotta, é preciso capacitar os pesquisadores a trabalhar com inovação, para que saibam identificar oportunidades e o que fazer com elas, quando elas aparecerem. Por exemplo, como lidar com questões relacionadas à propriedade intelectual (patentes), relacionamento com empresas, desenvolvimento tecnológico, etc. — coisas que não fazem parte do portfólio tradicional de aptidões de um pesquisador acadêmico.

“A inovação é uma questão de oportunidade, sim, mas também de conhecimento e capacitação”, destacou Ferreira, que é especialista no desenvolvimento de vacinas. Ele conta que começou sua carreira como um pesquisador acadêmico tradicional, “feliz em publicar seus papers”, até que resolveu se tornar um cientista empreendedor. “Foi um trajeto longo e doloroso de aprendizado”, lembra.

Segundo dados da Auspin, a USP já tem mais de 170 disciplinas relacionadas a inovação e empreendedorismo; e a FEA está criando uma trilha específica para o tema, com metade das vagas abertas para alunos de outras unidades. “A ideia é inocular essa cultura nos alunos desde o início da carreira”, disse o professor Moacir de Miranda Oliveira Junior, chefe do Departamento de Administração da FEA e coordenador geral da SciBiz 2019. Os “unicórnios”, segundo ele, são apenas a “ponta do iceberg”. “A universidade pode e deve ter esse papel de protagonismo no ambiente de empreendedorismo.”

A página Inovação em Números, da Auspin, traz vários dados relacionados à inovação e empreendedorismo na USP

“É algo que está na agenda da Universidade e que a gente realmente quer”, disse Marques, da Auspin. Segundo ele, a USP tem um portfólio de aproximadamente 1,2 mil patentes ativas, mas só 5% delas já foram licenciadas — ou seja, estão sendo usadas de fato no desenvolvimento ou comercialização de algum produto.

O caso mais conhecido — e de maior sucesso comercial — é o do Vonau Flash, medicamento para o controle de náuseas e vômitos desenvolvido pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP em parceria com a Biolab Sanus. A patente inicial da Universidade foi licenciada para a empresa em 2005 e hoje representa a maior fonte de royalties para a USP, oriunda da comercialização do produto.

Professor Antonio Carlos Marques, diretor da Auspin – Foto: Divulgação/Oiweek Scibiz 2019

O retorno financeiro é importante, mas “não é essa a questão principal”, disse Marques. Mesmo nas universidades mais inovadoras do mundo, como nos institutos de tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Califórnia (Caltech), os recursos de royalties são uma parte pequena do orçamento total das instituições. O mais importante, segundo ele, é o “reconhecimento sobre a descoberta” e o retorno que a universidade dá para a sociedade ao transferir seu conhecimento para ela na forma de novas tecnologias. “As universidades, assim como as empresas, ainda estão aprendendo como fazer essa conexões”, avaliou Marques.

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