Direito deve considerar particularidades da área de inovação

Análise é de especialistas do núcleo jurídico do OIC da USP sobre contratação de empresa para armazenamento de processos do TJ-SP

Foto: Visual Hunt

O Direito pode ser interpretado como uma forma de organizar a vida da sociedade. A inovação está relacionada à criação de um produto ou serviço que busca trazer impacto positivo na vida das pessoas. Será que é possível usar o que há de mais tradicional desenvolvido pelo Direito para a inovação? A indagação foi feita por três especialistas do núcleo jurídico do Observatório de Inovação e Competitividade (OIC), um núcleo de apoio à pesquisa ligado ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

Os advogados Carolina Mota Mourão, Maria Edelvacy Marinho e Vitor Monteiro analisaram a contratação da norte-americana Microsoft pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), anunciada em fevereiro, para o armazenamento em nuvem de processos de primeira e segunda instâncias.

E a posterior suspensão do contrato pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), alegando que o tribunal não seguiu resolução do órgão para implementar sistema desenvolvido e aconselhado pelo próprio conselho, e contratou uma empresa estrangeira para realizar serviços para um órgão público.

Para os especialistas, o caso envolve a Lei de Licitações e Contratos (8.666/93), utilizada para a contratação pública de serviços para o Estado, e um produto de inovação, mais especificamente o serviço de armazenamento em nuvem. Por isso, é preciso pensar as contratações na área pública dentro da lógica da inovação, que requer a reformulação de entendimentos mais tradicionais e a adoção de novas soluções jurídicas.

Maria afirma que o formato das estruturas jurídicas que existem não é uma forma adaptada ao que a inovação exige, mas há como as áreas andarem lado a lado. “Não vemos o jurídico como um entrave, mas como um instrumento. Só precisamos entender como ele tem sido utilizado e quais contribuições podemos dar para ter mais de debate que gere segurança jurídica quando estamos falando de inovação.”

Carolina Mota Mourão, Edevalcy Marinho e Vitor Monteiro são pesquisadores do Núcleo de Apoio à Pesquisa do Observatório da Inovação e Competitividade (NAP-OIC), com sede no Instituto Estudos Avançados da USP . Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

Entenda o caso

No dia 20 de fevereiro, o TJ anunciou a contratação da Microsoft para armazenar processos de primeira e segunda instâncias. O valor do acordo de R$ 1,32 bilhão seria realizado de forma direta, baseado na Lei de Inovação (10.973/04) e na própria Lei de Licitações e Contratos.

Segundo o presidente do TJ-SP,  desembargador Manoel Queiroz Pereira Calças, em entrevista coletiva, o processo de licitação foi dispensado devido ao sigilo necessário para essa contratação, que possui  risco tecnológico envolvido. O tribunal encomendou um parecer de professores titulares de direito administrativo, da Faculdade de Direito (FD) da USP, a fim de assegurar a legalidade na contratação direta.

O TJ-SP exigia ser coproprietário do código-fonte — basicamente, um conjunto de códigos que fazem com que um programa, sistema ou serviço funcione e, em seu modo fechado, preserva a propriedade e protege-se contra alterações indesejadas. O maior tribunal do País avaliou que, em cinco anos de parceria, a economia seria em torno de 40% do atual valor de R$ 243 milhões gastos para a manutenção dos data centers. “Não haverá mais queda ou travamento do sistema. É uma verdadeira revolução”, disse o presidente do tribunal paulista.

No dia posterior ao anúncio, 21 de fevereiro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável por fiscalizar questões do Poder Judiciário, dando controle, transparência administrativa e processual, suspendeu de forma cautelar o contrato do TJ-SP com a Microsoft por decisão liminar do relator do caso, Márcio Schiefler Fontes.

A decisão foi baseada na Resolução 185/2013 do CNJ e argumentada sobre a Lei (11.419/06) que aborda a informatização do processo judicial. O artigo 18 autoriza a regulamentação pelo Poder Judiciário, podendo ele instituir “o Sistema Processo Judicial Eletrônico (PJe) como sistema de processamento de informações e prática de atos processuais e estabelece os parâmetros”.

Sendo assim, o Tribunal de Justiça de São Paulo deveria seguir o sistema desenvolvido e aconselhado pelo CNJ. Ainda foi apresentado o argumento embasado pelo artigo 34 da mesma lei, onde a presidência do TJ-SP deveria dispor, através de um comitê gestor, um plano e cronograma a serem previamente aprovados pela presidência do CNJ.

Uma outra preocupação apresentada pelo conselho foi o fato de se tratar de uma empresa estrangeira servindo um órgão público brasileiro. Na íntegra, a decisão diz que “empresa estrangeira, em solo estrangeiro, manterá guarda e acesso a dados judiciários do Brasil, onde a intensa judicialização reúne, nos bancos de dados dos tribunais, uma infinidade de informações sobre a vida, a economia e a sociedade brasileira, o que, ressalvadas as cautelas certamente previstas, pode vir a colocar em risco a segurança e os interesses nacionais do Brasil, num momento em que há graves disputas internacionais acerca dessa matéria”.

O entrave ganhou mais um capítulo no dia 12 de março, quando o plenário manteve a suspensão e também abriu processo de diligência para que as áreas técnicas do conselho possam analisar as informações repassadas pelo TJ-SP sobre o caso.

Plenário do TJ-SP durante evento com presidentes de tribunais de outros estados – Foto: Antonio Carreta / Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Inovação e Direito

Carolina entende que o desafio, tanto deste caso, quanto de uma maneira geral, concentra-se no campo da interpretação. A lei específica sobre inovação abre possibilidade de fazer contratações diretas. “Não teremos uma competição entre os agentes de mercado. Isso é permitido em duas situações: para encomendas tecnológicas — o Estado quer contratar um produto novo que envolve um certo risco — e também para contratação de produtos de pesquisa. A lei trouxe isso e eu entendo como algo bem-vindo. Agora, temos desafios. É a cultura jurídica versus a cultura de inovação.”

Sobre a contratação de uma empresa estrangeira e a segurança de dados brasileiros, Maria destaca que, de alguma forma, isso já foi desmistificado. “Estamos falando de um novo padrão tecnológico. Não faz muito sentido, do ponto de vista econômico, ser mantido aqui, inclusive é uma tecnologia que bancos utilizam. Tem uma série de dados que utilizamos no Brasil e estão no sistema de nuvem.”

No seu entender, toda a discussão em torno do caso do TJ-SP e o CNJ ilustra um novo processo da sociedade. “Estamos diante de uma mudança cultural. Não só jurídica, mas cultural da forma de se conceber inovação no Brasil, sobretudo quando envolve dinheiro público — que existe todo um questionamento de transparência e concorrência. Mas é importante que se compreenda que, em qualquer lugar do mundo, a compra pública é um veículo de estímulo de promoção da inovação.”

Para Vitor, no Brasil, a inovação e o Poder Judiciário deixam a desejar no entraves para desenvolvimento de serviços, apesar de ser consenso que o País precisa incorporar as suas melhores tecnologias na prestação do serviço público. “Só que vem o grande problema: como? Existe uma percepção geral de que há uma necessidade, mas quando precisamos ser específicos e decidir como a tecnologia será aplicada, derrapa. E o Direito sempre tem derramado um óleo no chão.”

De acordo com o pesquisador, as discussões ocorridas no núcleo jurídico do OIC buscam analisar a relação da inovação e a legislação. E o que eles têm percebido que é preciso construir ambientes mais porosos, em que os espaços jurídicos de controle consigam capturar as particularidades daquela atividade que está sendo desenvolvida. “A inovação da tecnologia da informação é diferente da inovação na saúde, que é diferente em segurança, por exemplo. Como é que a gente vai lidar com esse parâmetro? E é um parâmetro que requer complexidade. E o Direito é quase sempre avesso à complexidade.”

Uma parte do núcleo jurídico do OIC divulgou nota à respeito do caso do TJ-SP, Microsoft e CNJ, no último dia 25 de fevereiro. Contudo, os três especialistas deixam claro que não se trata de um posicionamento institucional, mas uma maneira de demonstrar que está se acompanhando um exemplo de dispositivo jurídico utilizado a partir de uma interpretação sobre um serviço de inovação.

Devido a uma carência de relação entre as duas áreas, como ilustrado no ocorrido do TJ-SP, CNJ e Microsoft, a parte jurídica do núcleo de pesquisa foi fundada em 2017 para fomentar um ambiente democrático. “Queremos que a diversidade possa conviver, mediante a um debate plural. Pesquisadores das mais diversas áreas são bem-vindos. E a nossa pauta, especificamente, é uma pauta mais jurídica”, diz Carolina. O núcleo jurídico conta com uma rede em expansão com pouco mais de 70 pessoas que lidam com o assunto.

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